A espionagem russa no Brasil teve o envolvimento direto de integrantes do corpo diplomático de Moscou, segundo revelou uma testemunha em d...
A espionagem russa no Brasil teve o envolvimento direto de integrantes do corpo diplomático de Moscou, segundo revelou uma testemunha em depoimento à Polícia Federal. O relato, gravado como parte de um acordo de cooperação internacional, foi obtido com exclusividade pelo programa Fantástico, da Rede Globo.
O homem, que comandou uma agência de turismo por mais de uma década, afirmou ter prestado serviços ao consulado da Rússia no Rio de Janeiro durante 13 anos. Segundo ele, diplomatas atuaram ativamente na criação de identidades brasileiras falsas usadas por agentes da inteligência russa que operavam no exterior com passaportes emitidos no Brasil.
O depoimento contou com a presença de dois promotores de Justiça brasileiros, dois agentes do FBI, a polícia federal dos EUA, e um integrante da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Nele, a testemunha disse ter sido orientada a enviar dinheiro para Sergey Vladimirovich Cherkasov, agente russo que se apresentava como o brasileiro Victor Muller Ferreira.
À época, Cherkasov estava na Irlanda e usava passaporte emitido pelas autoridades brasileiras. “O Victor já estava no Brasil há muito tempo treinando português. O plano era que ele fosse fazer estágio lá na Europa”, disse a testemunha.

O primeiro espião
Cherkasov é, até o momento, o único espião russo preso no Brasil. Ele desceu no aeroporto de Guarulhos no dia 2 de abril de 2022, proveniente de Amsterdã, na Holanda, onde teve entrada vetada por irregularidades com a documentação. Detido no desembarque em São Paulo, teve a prisão preventiva decretada no dia seguinte pela Justiça brasileira, acusado de falsidade ideológica por portar documentos com dados falsos.
Àquela altura, as autoridades do Brasil já sabiam que o indivíduo em questão era na verdade um espião russo. Ele assumiu a identidade falsa provavelmente em 2011, quando existe o último registro de entrada de Cherkasov no Brasil, mas nenhum registro de saída. No período em que esteve aqui, regularizou toda a situação documental. Tinha carteira nacional de habilitação (CNH), cédula de identidade, certificado de dispensa militar e dois passaportes brasileiros.
Uma das inconsistências na falsa identidade criada pelo espião russo, que o levou a ser desmascarado, está relacionada à suposta mãe, Juraci Eliza Muller. Ela é de fato uma cidadã brasileira falecida, mas parentes dizem que jamais teve filhos. Tal informação também não consta da certidão de óbito da “mãe”, que Victor carregava com ele quando foi preso. É comum, porém, que tal documento indique se a pessoa morta deixou herdeiros.
Em seu depoimento, o homem detido em Guarulhos disse que Juraci morreu quando ele tinha dois anos e que, por isso, não tinha lembrança dela. Diz que deixou o Brasil rumo à Argentina com dois anos e lá foi criado por uma tia-avó, identificada como Pilar Palácio.
A polícia do Brasil estranhou o fato de o homem não carregar nenhum documento argentino, embora tenha dito que viveu no país sul-americano por cerca de 20 anos. Por outro lado, carregava diversos documentos brasileiros e também irlandeses e norte-americanos, de quando viveu e estudou nesses dois países.
A CNH igualmente ajudou a derrubar o disfarce. O documento de posse de Victor no desembarque em Guarulhos exibia uma foto dele mesmo. Já no sistema do governo brasileiro, a foto tirada quando o documento original foi expedido é de uma pessoa diferente. Há, nesse caso, duas hipóteses: o espião assumiu a identidade de outro brasileiro ou uma terceira pessoa fez o pedido da CNH em nome de Victor Muller Ferreira.
Quando foi barrado na Holanda, o espião se dirigia ao país para cumprir um contrato de estágio no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. Ali, a provável missão era acessar informações de interesse de Moscou, que na ocasião já havia iniciado a guerra na Ucrânia e por isso estava na mira da corte, que mais tarde emitiu um mandado de prisão contra o presidente Vladimir Putin por crimes de guerra.
Rede usava brechas no sistema brasileiro para criar identidades falsas
Uma reportagem publicada pelo jornal The New York Times revelou que a operação russa no Brasil é ainda maior do que se supunha e vem sendo investigada pela PF. A ação faz parte da Operação Leste, em curso há três anos com apoio da norte-americana CIA (Agência Central de Inteligência, da sigla em inglês), de serviços de inteligência europeus e de Israel.
O objetivo dos agentes não era espionar o Brasil, mas construir uma vida fictícia no país, obter documentos válidos e partir com nova identidade para outros destinos estratégicos, justamente como agiu Cherkasov. A operação da PF identificou que ao menos nove agentes russos passaram pelo país, alguns dos quais até então não haviam sido citados publicamente.
Reportagem publicada por A Referência em 2023 mostrou que a criação de identidades falsas com documentos autênticos é viável no Brasil. Dois funcionários de cartórios ouvidos sob anonimato explicaram que, embora os controles tenham se tornado mais rígidos a partir dos anos 1990, com a padronização da Declaração de Nascido Vivo, brechas ainda permitem a emissão de registros com base apenas em declarações de testemunhas, especialmente no caso de nascimentos antigos ou em zonas rurais.
Os cartorários ressaltaram que, atualmente, o sistema é digital e deixa rastros, o que dificulta fraudes sem a participação direta de um funcionário. No entanto, no período anterior à digitalização, era possível obter documentos como certidões de nascimento e identidade com base em informações falsas, sem levantar suspeitas. É o que pode ter ocorrido no caso caso de Cherkasov, que alegava ter nascido em 1989, antes da implementação dos mecanismos de controle mais modernos.
Um delegado da Polícia Civil de São Paulo afirmou que a forma mais comum de falsificação de identidade no país envolve o uso de dados de bebês falecidos que não tiveram suas mortes averbadas. A partir dessa lacuna, seria possível obter novos documentos em nome da criança e assumir legalmente a identidade dela. O mesmo delegado destacou também a facilidade em fraudar documentos como CNHs, com ajuda de corrupção em departamentos de trânsito, além da falsificação de passaportes, estes os campeões em tentativas de fraude.
Dados da Serasa Experian reforçavam em 2023 o alerta: apenas em novembro de 2022, foram registradas mais de 283 mil tentativas de fraude de identidade no Brasil. São Paulo liderava em número absoluto, com mais de 87 mil casos no mês, revelando um cenário propício para a atuação de redes especializadas. Ou, como ficou claro agora, de agentes a serviço de potências estrangeiras.
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